Eu tive a chance de viver. Não me
perguntem a razão, nem os motivos. Posso enumerar diversos, mas as certezas são
tão frágeis que seria inútil apontar o que seria decisivo, talvez nem tenha
acontecido, ainda. O fato seguro é que sempre existe uma razão para prosseguir.
Época de carnaval, a diversão da
criançada era atirar água nos transeuntes, através de inocentes esguichos
plásticos. Éramos seis irmãos, escadinha composta de quatro mulheres e dois
homens. Uma perua Kombi sem os bancos do meio servia de plataforma para mirar e
enviar o jato d’água, através de suas janelas, até as nossas “vítimas”, enquanto
meu pai, com minha mãe ao lado, nos levava para casa.
Descendo uma rua central, rente a janela
do veículo, eu espremia aquela bisnaga quando, por razões que jamais saberei, a
porta se abriu, a bisnaga ficou presa no vidro, fui arremessado para fora com o
carro em movimento. Por um instante o mundo clicou a tecla “pausa”, enquanto a
perua prosseguia seu caminho, algo estranho aconteceu.
Era um menino mas a sensação de
“alguém” ter me segurado, me protegido durante a queda e evitado que outros
veículos me atropelassem, foi algo marcante. Um pequeno arranhão! Meus
chinelos, foram arrancados dos pés, o mundo liberou a tecla “pausa”, percebi a
preocupação das pessoas que se aproximavam. Não lhes dei tempo nem de chegar,
simplesmente, catei os chinelos e corri atrás da Kombi, que ainda descia, sem
que meu pai percebesse o ocorrido.
Ele brecou o carro com o alerta dos
outros irmãos. Assustado, me viu entrar pela mesma porta que havia
proporcionado aquela ocorrência, segurando o par de chinelos na mão. Estava inteiro!
Minha mãe pálida, não acreditava naquilo e, refeita, agradeceu a Deus e ao anjo
de minha guarda. Alguém me segurou, não era a minha hora.
A vida tomou sua rotina. A experiência
única, completamente diferente dos acidentes, que não foram poucos, e me
custaram dente quebrado, torções, cicatrizes, jamais se equipararam àquele
acontecimento, sem dor, sem sangue, só um arranhão. Uma chance me havia sido
dada, de alguma forma, fui poupado.
Hoje, percebo que ainda estou em dívida
é por isso que prossigo. Pautei minha existência no sentido de ser uma pessoa
melhor a cada dia, coerente com meus valores e disposto a trilhar o caminho do
bem. Porém, errei muito, magoei muito, ofendi muito, ainda que o desejo fosse
de acerto, de promover alegria, de elevar as pessoas.
Luto por aquilo que acredito, até as
últimas consequências. Não trago arrependimentos que me fizessem querer fazer
diferente do que fiz. Isso alivia possíveis culpas, sofrimentos e permite
prosseguir até encontrar a razão definitiva daquele sublime momento. Talvez nem
exista, talvez o viver, por si só, seja suficiente motivo, ou talvez já tenha
feito algo que o justificasse. Sei lá!
O fato é que a vida é única, ímpar,
sublime. Talvez você não tenha vivenciado algo como isso, mas ao vasculhar a memória,
irá encontrar passagens que lhe indicavam um bem querer imenso da vida por você
e um pedido velado para seguir em frente, sem medo, quase um direito adquirido
onde a lei única fala a respeito de seu amor, do amor pelos outros, do amor por
si mesmo.
Siga
em frente, é a melhor resposta que a vida lhe pede!
Texto do livro "Pensar para sair do lugar"