domingo, 26 de abril de 2020

Voo para a vida


         Eu tive a chance de viver. Não me perguntem a razão, nem os motivos. Posso enumerar diversos, mas as certezas são tão frágeis que seria inútil apontar o que seria decisivo, talvez nem tenha acontecido, ainda. O fato seguro é que sempre existe uma razão para prosseguir.
         Época de carnaval, a diversão da criançada era atirar água nos transeuntes, através de inocentes esguichos plásticos. Éramos seis irmãos, escadinha composta de quatro mulheres e dois homens. Uma perua Kombi sem os bancos do meio servia de plataforma para mirar e enviar o jato d’água, através de suas janelas, até as nossas “vítimas”, enquanto meu pai, com minha mãe ao lado, nos levava para casa.
         Descendo uma rua central, rente a janela do veículo, eu espremia aquela bisnaga quando, por razões que jamais saberei, a porta se abriu, a bisnaga ficou presa no vidro, fui arremessado para fora com o carro em movimento. Por um instante o mundo clicou a tecla “pausa”, enquanto a perua prosseguia seu caminho, algo estranho aconteceu.
         Era um menino mas a sensação de “alguém” ter me segurado, me protegido durante a queda e evitado que outros veículos me atropelassem, foi algo marcante. Um pequeno arranhão! Meus chinelos, foram arrancados dos pés, o mundo liberou a tecla “pausa”, percebi a preocupação das pessoas que se aproximavam. Não lhes dei tempo nem de chegar, simplesmente, catei os chinelos e corri atrás da Kombi, que ainda descia, sem que meu pai percebesse o ocorrido.
         Ele brecou o carro com o alerta dos outros irmãos. Assustado, me viu entrar pela mesma porta que havia proporcionado aquela ocorrência, segurando o par de chinelos na mão. Estava inteiro! Minha mãe pálida, não acreditava naquilo e, refeita, agradeceu a Deus e ao anjo de minha guarda. Alguém me segurou, não era a minha hora.
         A vida tomou sua rotina. A experiência única, completamente diferente dos acidentes, que não foram poucos, e me custaram dente quebrado, torções, cicatrizes, jamais se equipararam àquele acontecimento, sem dor, sem sangue, só um arranhão. Uma chance me havia sido dada, de alguma forma, fui poupado.
         Hoje, percebo que ainda estou em dívida é por isso que prossigo. Pautei minha existência no sentido de ser uma pessoa melhor a cada dia, coerente com meus valores e disposto a trilhar o caminho do bem. Porém, errei muito, magoei muito, ofendi muito, ainda que o desejo fosse de acerto, de promover alegria, de elevar as pessoas.
         Luto por aquilo que acredito, até as últimas consequências. Não trago arrependimentos que me fizessem querer fazer diferente do que fiz. Isso alivia possíveis culpas, sofrimentos e permite prosseguir até encontrar a razão definitiva daquele sublime momento. Talvez nem exista, talvez o viver, por si só, seja suficiente motivo, ou talvez já tenha feito algo que o justificasse. Sei lá!
         O fato é que a vida é única, ímpar, sublime. Talvez você não tenha vivenciado algo como isso, mas ao vasculhar a memória, irá encontrar passagens que lhe indicavam um bem querer imenso da vida por você e um pedido velado para seguir em frente, sem medo, quase um direito adquirido onde a lei única fala a respeito de seu amor, do amor pelos outros, do amor por si mesmo.
         Siga em frente, é a melhor resposta que a vida lhe pede!
                                                                                                                                                     Texto do livro "Pensar para sair do lugar"

Um comentário:

Unknown disse...

Estou vasculhando minha memória.Precisava ler isso hoje.